Entre a intransigência e a indulgência da parte que me compete, enquanto escrevo em estado de greve, viceja uma espécie de literatura desencarnada. Desencarnada, pois o meu espírito, enquanto avatar de um eduzir mágico e volátil, deve se separar, temporariamente, da carne-ofício de hermetismos cartesianos e encarnar em antropófagas alquimias tupinambás.
Quando escrevo, o que eu escrevo é nada mais além do que o outro que lê e esse outro que lê é quem me devora: é o texto-que-é-o-outro-que é o devorador devorado. E o texto que me devora é meu e não é meu. Assim, o que é meu não é meu. Sou eu, quem escreve, que devora o outro, que lê, quem me devora. A antropofagia alquímica está aí. Nessa partícula meio-termo. A palavra separada do texto é a saliva que prepara o primeiro estágio do bolo-narrativa-alimentar. A ficção devora a mentira e a digere no estômago-fogueira. A intransigência do galho seco cede à indulgência do fogo vivo.
E no fogo vivo de um estômago indulgente a intransigência reside no fato de que tudo é ficção. Tudo. Por conseguinte, a mentira mor, a encarnação mais espessa, é crer que escrevo ficção quando é a ficção que me escreve.
Kuaracy Korá, emanação, é o tema, não (e também) demiurgos apostólicos romanos; Yamandu, mistério, é a trama, não (e também) caravelas joycianas-representações-de-si-mesmas; Tupã, criação, é o estilo, não (e também) lusofonias para além de Brasil-Portugal; Karai, enquanto liderança, os personagens; Tupancy, a mãe da Divindade, o cenário; Yaci; Jakairá; e assim em diante.
O devorar para ser devorado para devorado devorar.
A redundância do paradoxo é necessária.
Para que, de fato, a literatura, pelo menos a minha, desencarne, é preciso ir além da constatação de que o que é meu não é meu. É preciso conquistar o horizonte da ratificação de que, também, o que é do outro não é do outro. Quando leio, sou o outro que me escreve. Quando escrevo, sou o outro que me lê. Tudo é ficção. Nem tudo é literatura desencarnada. Talvez, espécies de literatura desencarnada. Como a que viceja enquanto escrevo em estado de greve.
Estado de greve.
Transe de greve.
A impermanência do permanente enquanto greve.
O texto literário, na qualidade de arte, precisa extrapolar quem assina sua autoria. Isto posto, enquanto escrevo, escrevo-ritual. Ritual que consiste na concatenação de um desbaratamento com a egrégora do mito. Ser humano é ser mito. Ritual que exige o meu sacrifício. O meu trabalho só existe a partir do momento que deixa de ser meu sem deixar de ser, me aniquila, quando me transcende.
Quando me desindividualizo, me desencarno e a minha literatura cria raízes – se materializa. O verbo se faz carne.
Sem o pronome meu, torno-me uma espécie de Deus. O texto (literatura), como uma espécie de Cristo. Assim, “meu” texto, a “minha” literatura desencarnada, é tão meu quanto Cristo o é de João, Mateus, Marcos ou Lucas.
Nhembojera.
Algo como abrir-se em flor.
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